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A Advogada da União e Associada da Associação Nacional dos Advogados da União – ANAUNi – Dr. Gabriela Moreira Castro publicou no site especializado em estudos jurídicos – JUS NAVIGANDI – relevante artigo doutrinário esclarecendo que a descentralização de atribuições no Sistema Único de Saúde entre os entes participantes justifica a não imputação á União da execução de procedimentos de Média e Alta complexidade.

Forte em doutrina e jurisprudência, explica a Advogada da União que o Poder Judiciário pode auxiliar na efetivação eficiente do Sistema quando determina obediência a tal distribuição de atribuições, colaborando para o maior alcance do Direito á Saúde.

 Veja abaixo o texto na íntegra:

Considerações sobre as decisões judiciais que tratam de atos referentes ao bloco de financiamento do Sistema Único de Saúde chamado de Atenção de Média e Alta Complexidade Ambulatorial e Hospitalar.

Considerations about the decisions of courts dealing with actions relating to block financing of Brazilian Public Health System called Attention of Secondary and High Care Outpatient and Inpatient.

Gabriela Moreira Castro

Advogada da União, Consultoria Jurídica do Ministério da Saúde

Resumo:

A União, por lei e em atendimento ao princípio da descentralização, previsto na Constituição, não é capacitada para executar diretamente ações previstas no bloco de financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS) chamado de Atenção de Média e Alta Complexidade Ambulatorial e Hospitalar. Não obstante, é crescente a quantidade de decisões judiciais que lhe impõem a obrigação de realizar essas ações. Demonstrou-se, por meio de análise da jurisprudência atual, como as determinações judiciais desorganizam o modo como o SUS é estruturado, no que tange às ações previstas para o mencionado bloco de financiamento. Por outro lado, explanou-se como o Poder Judiciário, ao considerar o princípio da descentralização, em suas decisões, pode se tornar um aliado na concretização do Sistema, a fim de garantir a realização, de modo mais efetivo, das ações de saúde no bloco da Atenção de Média e Alta Complexidade Ambulatorial e Hospitalar.

Palavras-chave: Sistema Único de Saúde. Princípio da Descentralização. Bloco de Financiamento Atenção de Média e Alta Complexidade Ambulatorial e Hospitalar. Políticas Públicas. Ações Judiciais.

Abstract:

Union, by law and in compliance with the principle of decentralization in the Constitution, is not qualified to perform actions directly under block funding of the Brazilian Public Health System (SUS) called attention to secondary and tertiary care outpatient and inpatient. Nevertheless, it is increasing the number of court decisions that impose to Union an obligation to perform these actions. It was demonstrated, through analysis of current case law, as judicial decisions disrupt the way the SUS is structured, with respect to the actions planned for the mentioned block funding. On the other hand, it was explained as the Judiciary, to consider the principle of decentralization, in its decisions, can become an ally in implementing the system in order to ensure achievement, more effective health actions in the block care of ambulatory and tertiary care hospitals.

Keywords: Brazilian Public Health System (SUS). Principle of Decentralization. Block Funding Attention of Middle and High Complexity Hospital Outpatient. Public Policy. Lawsuits

Introdução

É bastante árduo, atualmente, para a União lidar com decisões judiciais que lhe obrigam a realizar, diretamente, ações previstas no bloco de financiamento do Sistema Único de Saúde chamado de Atenção de Média e Alta Complexidade Ambulatorial e Hospitalar (AMACAH)[1]. Como exemplos dessas decisões, podem-se citar aquelas para que a União proceda à internação de uma determinada pessoa em uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI), à realização de exames e/ou de cirurgias, bem como ao aumento da quantidade de leitos disponíveis em UTI em uma determinada localidade.

A dificuldade no atendimento a essas determinações judiciais decorre de sua prolação sem a necessária observância de como se estrutura o Sistema Único de Saúde (SUS). Em geral, impõe-se a obrigação à União, que não possui estrutura para cumpri-la, já que aquele ato não se encontra dentro de suas atribuições previstas na legislação que rege o Sistema.

Assim, por ausência de previsão legal, a União não possui o arcabouço para materialmente executar de forma direta e efetiva esse tipo de ação. Resta-lhe a possibilidade de contatar o gestor local (estadual ou municipal) do Sistema Único, para tentar que ele execute o ato, o que é seu dever. Porém, variadas vezes, esse contato resta frustrado. Nesses casos, o único meio que a União possuirá para cumprir a decisão judicial será mediante a realização de um depósito judicial no valor do objeto demandado.

No entanto, isso gerará o dispêndio em duplicidade pela União de verbas para esse tipo de atendimento, caracterizando um duplo financiamento: em primeiro lugar, porque ela possui a obrigação de repassar recursos para esse fim ao gestor local, para que ele o concretize, e, em segundo lugar, porque realiza os mencionados depósitos, como único meio que lhe resta para cumprir as decisões judiciais.

Estão cada vez mais freqüentes demandas judiciais com esse objetivo, o que torna imprescindível uma abordagem mais cautelosa sobre o tema. Essas lides, por suas naturezas, carregam uma forte carga emocional, visto que versam sobre pessoas fragilizadas física e, muitas vezes, financeiramente também. É preciso, apesar disso, estudar racionalmente como se organiza o SUS nessa matéria, a fim de se impor a obrigação a quem é diretamente responsável pelo seu atendimento e, dessa forma, possibilitar o tratamento, da melhor maneira, a quem dele necessita.

Na maioria dos casos, o Poder Judiciário tende a condenar, de forma solidária, a União, o Estado e o Município a fornecerem o tratamento médico pleiteado. Variadas vezes, outrossim, em lides como essas, apenas a União é arrolada como parte ativa ou somente ela é condenada.

Objetivar-se-á demonstrar como esse tipo de demanda e de determinação vai de encontro à normatização do SUS. Ao mesmo tempo, essas condenações dificultam, atrasam ou, até mesmo, impossibilitam o atendimento da ordem judicial, ao contrário, paradoxalmente, do que desejava o magistrado ao proferi-las.

A solução de se cumprir a decisão por meio de depósito judicial, por sua vez, pode até resolver o caso concreto pontual, mas não colabora na regulamentação do Sistema, desorganizando suas previsões e dificultando seu funcionamento. A microjustiça acaba prevalecendo sobre a macrojustiça.

Ademais, pode gerar uma acomodação do gestor de saúde, o qual, talvez, não procure adotar uma determinada política pública, pois sabe que uma parcela do erário deverá ser reservada para o atendimento das determinações judiciais. Nasce um círculo vicioso, em que o magistrado decide, devido a uma insuficiência nas ações do gestor e este não age, preventivamente, como deveria agir, pois necessita de se precaver para ter meios de atender às determinações judiciais.

Outrossim, caso os magistrados impusessem a obrigação ao gestor local, responsável por lei pela sua realização, poderiam contribuir para a formação de dados estatísticos sobre a falha na prestação de serviço, para que o gestor pudesse se programar, de modo a corrigir o problema. Todavia, com a condenação imposta à União, o gestor local não precisa de se preocupar com esses dados, nem com a melhora da sua prestação do serviço, pois sabe que se encontra resguardado, devido às condenações impostas à União.

Em geral, os juízes se satisfazem ao fundamentar suas decisões com base nas garantias constitucionais à saúde e à vida ou com base na solidariedade entre as pessoas políticas em matéria sanitária, muitas vezes, meramente citando o artigo 196 da Constituição, para alegar que a saúde é dever do Estado.

No entanto, os magistrados, comumente, falham em analisar a fundo a diretriz constitucional da descentralização do Sistema, que faz parte da política pública do SUS. Esquecem-se de que o artigo 196[2] estatui que a saúde é, realmente, dever do Estado, porém, “garantido mediante políticas sociais e econômicas”, dentre as quais se encontra a política da descentralização e regionalização.

Os julgadores carecem também em considerar a legislação ordinária e as diversas normas que regulam, especificamente, o bloco de financiamento do SUS chamado de Atenção de Média e Alta Complexidade Ambulatorial e Hospitalar (AMACAH). Devido a essa freqüente ausência de fundamentação nas decisões judiciais, objetiva-se explicar a normatização do SUS acerca dessa matéria.

Não se busca afirmar que a União não possui nenhuma atribuição com relação ao atendimento dos pedidos de realização de exames, cirurgias e internações em UTI’s. Aduz-se, porém, que, caso seja condenada em uma ação judicial, que o seja de acordo com suas competências legais, estabelecidas em obediência à descentralização, prevista na Constituição da República.

1 Do Bloco de Financiamento Atenção de Média e Alta Complexidade Ambulatorial e Hospitalar- AMACAH

Inicialmente, necessário explicar que o SUS é financiado pelos três entes da federação: União, Estados e Municípios.

O financiamento do Sistema, no que tange especificamente à responsabilidade da União, ocorre por meio de blocos de financiamento, com repasse aos Estados, aos Municípios e ao Distrito Federal de recursos, conforme regulamentação da  Portaria nº 204 de 29 de janeiro de 2007

O art. 4º da referida Portaria estabelece os seguintes blocos de financiamento: Atenção Básica; Atenção de Média e Alta Complexidade Ambulatorial e Hospitalar; Vigilância em Saúde; Assistência Farmacêutica; Gestão do SUS e Investimentos.

O bloco de financiamento Atenção de Média e Alta Complexidade Ambulatorial e Hospitalar

é composto por ações e serviços que visam a atender aos principais problemas e agravos de saúde da população, cuja complexidade da assistência na prática clínica demande a disponibilidade de profissionais especializados e a utilização de recursos tecnológicos, para o apoio diagnóstico e tratamento.[3]

Também pode ser definido como “conjunto de procedimentos que, no contexto do SUS, envolve alta tecnologia e alto custo, objetivando propiciar à população acesso a serviços qualificados, integrando-os aos demais níveis de atenção à saúde.” [4]

 Como exemplos das principais áreas que compõem a alta complexidade do SUS, organizadas em redes, temos: assistência ao paciente oncológico, cirurgia cardiovascular, procedimentos de neurocirurgia, assistência aos pacientes portadores de queimaduras, distrofia muscular progressiva, dentre outros.

Os recursos federais são transferidos, com regularidade, do fundo federal, para os fundos estaduais e municipais, para a execução dos procedimentos previstos para esse bloco de financiamento. O valor transferido pela União pode ser conferido por meio do sítio eletrônico www.fns.saude.gov.br.

Releva mencionar que o montante a ser repassado é objeto de pactuação nas Comissões Intergestoras Tripartite (CIT) e Bipartite (CIB)[5]. Dessa forma, é acordado por todos os representantes das esferas federais. Ao mais, o artigo 35 da Lei 8080/90 estabelece critérios para se definir esse montante, como, por exemplo, dentre outros, a série histórica, o perfil epidemiológico e a capacidade instalada.

2 Da divisão de competências entre os entes federados no SUS, considerando-se a descentralização, prevista constitucionalmente.

A concretização do SUS, conforme o disposto na Constituição da República, é de responsabilidade dos três entes da federação, de acordo com suas atribuições específicas. Nossa carta magna estatui que o SUS perfaz um sistema único, organizado como uma rede regionalizada e hierarquizada, sendo o princípio da descentralização uma diretriz dos serviços públicos de saúde (artigo 198, I), veja-se:

Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:

I – descentralização, com direção única em cada esfera de governo

 A Lei Orgânica da Saúde (Lei 8.080/90), em atenção à Constituição, possui disposição neste sentido:

Art. 7º As ações e serviços públicos de saúde e os serviços privados contratados ou conveniados que integram o Sistema Único de Saúde (SUS), são desenvolvidos de acordo com as diretrizes previstas no art. 198 da Constituição Federal, obedecendo ainda aos seguintes princípios:

(…)

IX – descentralização político-administrativa, com direção única em cada esfera de governo:

a) ênfase na descentralização dos serviços para os Municípios;

b) regionalização e hierarquização da rede de serviços de saúde;

Como se depreende da transcrição acima, a descentralização do sistema ocorre com ênfase na municipalização (princípio do SUS, inserido no inciso IX, artigo 7º, da Lei 8.080/90, supra transcrito).

O princípio da descentralização pode ser conceituado como o processo de transferência de responsabilidades de gestão para os Municípios, atendendo às determinações constitucionais e legais que embasam o SUS e que definem atribuições comuns e competências específicas à União, Estados, Distrito Federal e Municípios..[6]

A Lei atribuiu aos Municípios responsabilidade pela execução e prestação direta dos serviços de saúde (art. 18, incisos I, IV e V, da Lei n.º 8.080/90).

Isso também compatibiliza o sistema com o estabelecido pela Constituição da República, no seu artigo 30, VII: “Compete aos Municípios (…) prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população”.

Relevante frisar que é vontade constitucional que a prestação direta dos serviços de atendimento à saúde da população seja da competência dos Municípios, pela proximidade com as necessidades dos cidadãos, podendo, assim, melhor assisti-los.

Os principais instrumentos de regionalização existentes são o Pacto pela Saúde, o Pacto de Gestão (componente do Pacto pela Saúde), o Plano Diretor de Regionalização, o Plano Diretor de Investimento e a Programação Pactuada e Integrada.

A linha executiva do SUS estatui que a realização das ações de saúde deve ser implementada por seus gestores locais (de acordo com suas características regionais, demográficas e epidemiológicas).

Essa configuração restou formalizada definitivamente em 26 de janeiro de 2006, pelos Gestores do SUS, por ocasião de reunião da Comissão Intergestores Tripartite, culminando no Pacto pela Saúde.

A Portaria/GM nº 399, de 22 de fevereiro de 2006, dispôs sobre as diretrizes do Pacto pela Saúde, o qual, por haver nascido de uma CIT, confirma que gestores dos três entes federados concordaram com a descentralização e assumiram espontaneamente a responsabilidade de concretizá-la.

O desenvolvimento da regionalização e hierarquização das ações de saúde é crucial para se alcançar a integralidade da assistência, em atendimento ao comando constitucional.

Os sanitaristas, no processo de implantação do Sistema Único de Saúde previram a descentralização das ações sanitárias, uma vez que não seria plausível, em um país enorme como o Brasil, que a execução das políticas públicas permanecesse dependente de um único comando, distante da realidade e necessidades de grande parte dos cidadãos.

Visando à concretizar a descentralização, destaca-se que uma das competências do Ministério da Saúde é “promover a descentralização para as Unidades Federadas e para os Municípios, dos serviços e das ações de saúde, respectivamente, de abrangência estadual e municipal” (incs. XV, do art. 16). Do mesmo modo, entre as competências das Secretarias Estaduais de Saúde, encontra-se: “promover a descentralização para os Municípios dos serviços e das ações de saúde” (art. 17, inc. I).

De qualquer modo, a fim de buscar um atendimento universal e preencher lacunas de prestação dos serviços de saúde pelos Municípios, a Lei Orgânica da Saúde (Lei 8.080/90) dispõe, como cautela, que competirá aos Estados executar supletivamente as ações e serviços de saúde:

Art. 17. À direção estadual do Sistema Único de Saúde (SUS) compete:

        III – prestar apoio técnico e financeiro aos Municípios e executar supletivamente ações e serviços de saúde;

        IV – coordenar e, em caráter complementar, executar ações e serviços:

        a) de vigilância epidemiológica;

        b) de vigilância sanitária;

        c) de alimentação e nutrição; e

        d) de saúde do trabalhador; (grifos inseridos)

Em suma, verifica-se que a obrigação legal de executar diretamente os serviços de saúde é dos Municípios e, supletivamente, dos Estados.

À União, quanto às ações relativas ao bloco de financiamento do SUS chamado de Atenção de Média e Alta Complexidade Ambulatorial e Hospitalar (AMACAH), caberá o financiamento do sistema, além de sua fiscalização e avaliação técnica de sua qualidade, conforme descrito no artigo 16, da Lei 8.080/90.

Portanto, percebe-se que, dentre as competências legais da União, referente aos serviços relativos ao bloco de financiamento AMACAH, não se encontram a execução e prestação direta ao cidadão, uma vez que isso é atribuição do gestor local (estadual ou municipal).

Nesse sentido, ressalta-se a explicação constante em nota técnica, proveniente da Coordenação Geral da Média e Alta Complexidade da Secretaria de Atenção à Saúde, órgão do Ministério da Saúde:

Ressalto que cabe às Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde identificar suas necessidade e fazer o planejamento de sua Rede de Saúde, bem como possibilitar exames aos usuários do SUS. Compete ao ministério da Saúde o papel normativo, provedor de recursos da sua competência, elaborador de políticas públicas e gerenciador de sistemas de informações, e, aos Estados, Municípios e Distrito Federal, identificar suas necessidades, estipular cotas, credenciar e controlar os serviços de suas Redes assistenciais, bem como disponibilizar a assistência aos seus usuários.[7]

Dessa forma, o papel da União, quanto a esse bloco de financiamento, restringe-se a definir políticas públicas, a fiscalizar e a repassar os recursos para os gestores locais para financiar as ações de Média e Alta Complexidade. Por conseguinte, não é adequada a inclusão da União como legitimada passiva em demandas judiciais, cujo objeto é a realização dos procedimentos referentes à AMACAH, uma vez que é da competência do gestor local a sua realização efetiva.

Quando a União argumenta que não possui atribuição para prestar materialmente um serviço de saúde e alega que isso é atribuição do gestor local, não está a tentar escapar de um dever. Em verdade, a União assim o declara, a fim de que a Constituição seja obedecida, de modo a se cumprir o princípio constitucional da descentralização, bem como, em conseqüência, atender ao objetivo dessa diretriz: uma prestação mais efetiva ao cidadão necessitado.

Freqüentemente, os juízes demonstram compreender que há divisão de competências, entre os entes federados, na organização do SUS. Contudo, mesmo assim, insistem em condenar, igualmente, os três entes federados a realizar um determinado procedimento de saúde, sem se preocupar em observar de quem seria aquela atribuição. Outras vezes, a condenação incide em apenas um deles, aleatoriamente, sendo que, com bastante freqüência, a condenação recai apenas na União, talvez por ser considerada a pessoa política mais solvente.

Os magistrados assim agem por interpretarem que o artigo 196 da Constituição da República impôs a saúde como dever do Estado, genericamente, englobando, sem distinções, as três pessoas políticas. Ao mais, por entenderem que a descentralização prevista no artigo 198, apenas reforça o caráter solidário da responsabilidade entre os entes federativos.

Nesse sentido, observe-se essa parte do julgamento do Agravo Regimental na Suspensão de Segurança n. 3.335, DJe 30.4.2010, em que o relator Ministro Gilmar Mendes aduziu que:

União, Estados, Distrito Federal e Municípios são responsáveis solidários pela saúde, tanto do indivíduo quanto da coletividade e, dessa forma, são legitimados passivos nas demandas cuja causa de pedir é a negativa, pelo SUS (seja pelo gestor municipal, estadual ou federal), de prestações na área de saúde.

O fato de o Sistema Único de Saúde ter descentralizado os serviços e conjugado os recursos financeiros dos entes da Federação, com o objetivo de aumentar a qualidade e o acesso aos serviços de saúde, apenas reforça a obrigação solidária e subsidiária entre eles.

Todavia, é preciso deixar claro que, em nenhum dispositivo, a Constituição determina expressamente que há obrigação solidária entre as pessoas políticas, para a prestação de ações de saúde. Por outro lado, há a previsão explícita da descentralização.

Fica a indagação: a descentralização realmente reforça a obrigação solidária e subsidiária entre os entes, como comumente entendem os magistrados? Ou, na realidade, a previsão constitucional da descentralização apenas demonstra que o mais adequado para o funcionamento do Sistema seria a consideração de que cada um dos entes é responsável por realizar suas tarefas do SUS, conforme suas competências legais e constitucionais e, dessa forma, deveriam ser condenados a prestarem os procedimentos de saúde de acordo com suas atribuições?

Entender-se como correta a última alternativa, certamente, contribuirá para o melhor funcionamento do SUS, aclarando qual pessoa política é responsável por cada ação, tornando-se mais simples, assim, corrigir e punir as falhas do ente que não prestou um serviço de saúde como deveria. Somente assim estar-se-á privilegiando a macrojustiça, ao invés da microjustiça.

É preciso lembrar que o artigo 196 realmente estatui que a saúde é dever do Estado em sentido geral, porém, “garantido mediante políticas sociais e econômicas”, dentre as quais se encontra a política da descentralização e regionalização.

3 Decisões que determinam internação em Unidades De Tratamento Intensivo (UTI)

As Unidades de Tratamento Intensivo (UTI) também se inserem na assistência de média e alta complexidade do SUS.

As UTIs são avaliadas e credenciadas por características tecnológicas, de engenharia, pela conformação de sua equipe assistencial, pelo número de leitos, pela disponibilização de equipamentos, entre outros pontos.

Há  diversas normas que regulam o credenciamento e o funcionamento das UTI’s. De modo geral, pode-se resumir que, dentre vários outros aspectos, delega-se ao gestor estadual e/ou municipal a definição e o cadastramento dessas unidades, mediante aprovação na Comissão Intergestores Bipartite.

Por conseguinte, o gestor local realiza uma vistoria, para avaliar se uma determinada unidade de tratamento cumpre todos os requisitos que previstos na legislação que regulamenta a UTI. Após, caso conclua afirmativamente, enviará a avaliação à CIB, para discutir sobre a necessidade do credenciamento, diante dos dados epidemiológicos e orçamentários. Posteriormente, levará ao Ministério da Saúde, para habilitação e publicação no Diário Oficial da União. Depois disso, o gestor local poderá cadastrá-la.

Acrescente-se ainda as informações constantes no Parecer Técnico 241/2010 da Secretaria de Atenção à Saúde – Departamento de Atenção Especializada, Coordenação Geral de Atenção Hospitalar:

A distribuição, a fiscalização, a regulação e o fornecimento dos leitos de Unidade de Terapia Intensiva – UTI credenciados ao SUS são de competência do Gestor Estadual e/ou Municipal, consoante o Princípio de Descentralização. Ao Ministério da Saúde caberá o credenciamento de leitos de UTI, cujos processos serão formalizados pelos gestores estaduais, que detêm as informações pertinentes ao serviço de saúde local. Para tanto, é necessária a manifestação do gestor local e que sejam identificados os Municípios ou regiões onde há déficit de leitos de UTI, encaminhando ao Ministério da Saúde a solicitação para o credenciamentos dos respectivos leitos, atendendo aos critérios da Portaria GM 3432/98, de 12/08/98, e ao fluxo estabelecido pela PT/GM/MS 598, de 23/03/2006. Diante dos fatos, a Coordenação Geral de Atenção Hospitalar entende coerente com o Pacto pela Saúde 2006, no qual o gestor local é responsável pela execução do atendimento, pela verificação da disponibilidade dos leitos e real ocupação dos mesmos, considerando que a organização da rede é de responsabilidade dos gestores (Estadual e Municipal).

 Por conseguinte, de acordo com o mencionado parecer técnico, percebe-se que a atribuição da União é de credenciar os leitos de UTI necessários para se atender à população de uma localidade. No entanto, para isso, a União precisa ser solicitada pelos gestores locais. Para credenciar leitos de UTI, torna-se imperioso que os gestores locais, por conhecerem a realidade, os dados e as deficiências dos Municípios e regiões em que atuam, forneçam essas informações imprescindíveis ao planejamento e atuação do Ministério da Saúde.

 Caso a União não seja instada a agir pelos gestores locais, considera que a situação naquela localidade encontra-se regular, com as Unidades de Tratamento Intensivo operando normalmente. Não seria razoável obrigar esse ente federado a agir por iniciativa própria, em todo o país, quando os gestores locais são omissos em apontar suas necessidades. A União não possui aparato para uma operação como essa, que seria extremamente dispendiosa. Por isso mesmo, o Sistema é descentralizado.

4  Decisões judiciais que obrigam a União a realizar procedimentos de Média e Alta Complexidade

Sobre a desorganização do Sistema, proveniente de decisões judiciais, torna-se adequado citar o posicionamento de Luís Roberto Barroso ao comentar decisões que determinam a entrega de medicamentos:

Mais recentemente, vem se tornando recorrente a objeção de que as decisões judiciais em matéria de medicamentos provocam a desorganização da Administração Pública. São comuns, por exemplo, programas de atendimentos integral, no âmbito dos quais, além de medicamentos, os pacientes recebem atendimento médico, social e psicológico. Quando há alguma decisão judicial determinando a entrega imediata de medicamentos, freqüentemente o Governo retira o fármaco do programa, desatendendo a um paciente que o recebia regularmente, para entregá-lo ao litigante individual que obteve a decisão favorável. Tais decisões privariam a Administração da capacidade de se planejar, comprometendo a eficiência administrativa no atendimento ao cidadão. Cada uma das decisões pode atender às necessidades imediatas do jurisdicionado, mas, globalmente, impediria a otimização das possibilidades estatais no que toca à promoção da saúde pública.[8]

Esse posicionamento diz respeito às decisões que determinam o fornecimento de medicamentos, porém se aplica, mutatis mutandis, às decisões sobre procedimentos referentes ao bloco AMACAH.

Desorganizam o modo como é estruturado o SUS as decisões judiciais que impõem à União a realização direta de procedimentos de média e alta complexidade, como uma cirurgia, um exame ou uma internação, bem como a obrigação de aumentar a quantidade de leitos disponíveis em UTI em uma localidade.

A seguir, transcrevemos alguns dispositivos de decisões que exemplificam o que aqui tratamos:

“Diante do exposto, concedo a tutela antecipada para que a União e o Distrito Federal propiciem ao autor a internação imediata em UTI neonatal. (…) Fixo multa diária de R$ 5.000,00 (cinco mil reais), em caso de descumprimento da presente decisão” (Ação ordinária nº 9237-29.2010.4.01.3400).

“(…) defiro o pedido de tutela antecipada, para determinar à União Federal que adote todas as medidas necessárias no sentido de proceder à cirurgia requerida, com a mais absoluta urgência, sob pena de cominação de multa diária, caso o único obstáculo seja o fato da requerente residir no Estado do Maranhão.” (Ação ordinária nº 2010.40.00.002012-5)

Ocorre a desorganização do Sistema, uma vez que a União não possui meios próprios para realizar diretamente os tratamentos comumente impostos pelas determinações judiciais, porquanto não administra hospitais próprios capacitados a realizar esse tipo de operação. Ou seja, esse ente federativo não é aparelhado para cumprir esse tipo de decisão judicial. Os nosocômios que devem oferecer esses tratamentos são os habilitados e administrados pelos gestores locais.

Há  poucos hospitais federais. Os únicos existentes são os universitários e alguns localizados em apenas dois estados brasileiros, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. No Rio de Janeiro existem os seguintes hospitais ligados ao Ministério da Saúde: Instituto de Cardiologia de Laranjeiras, Instituto Nacional do Câncer, Instituto Nacional de Traumoto Ortopedia, Hospital Geral dos Servidores, Hospital Geral de Bonsucesso, Hospital Geral de Jacarepaguá, Hospital Geral de Ipanema, Hospital Geral de Andaraí e Hospital Geral da Lagoa. Já na cidade de Porto Alegre, a União possui majoritariamente as ações do Hospital Nossa Senhora da Conceição.

Esses hospitais localizados no Rio Grande do Sul e no Rio de Janeiro tiveram sua origem no extinto INAMPS. Já os universitários se relacionam com o SUS por meio de convênio.

Contudo, é importante frisar que mesmo os hospitais federais se encontram sob gestão local, sendo certo que cabe à União, também quanto a eles, apenas o repasse dos recursos federais. O gerenciamento e administração permanecem sendo descentralizados, como demonstram os instrumentos jurídicos que regem cada um desses nosocômios.

Uma vez transferidos os recursos pela União, esta se desonera  da sua obrigação. Conseqüentemente, qualquer falha quanto ao gerenciamento da rede de atenção deve ser imputada ao Estado ou ao Município faltante.

Conclusão

 Ao explicar a sistemática  de funcionamento do Bloco da Atenção de Média e Alta Complexidade Ambulatorial e Hospitalar, demonstrou-se que a descentralização e hierarquização do SUS determinam que a realização das ações de saúde referentes a esse bloco deve ser implementada por seus gestores locais.

O desenvolvimento da regionalização e hierarquização das ações de saúde de média e alta complexidade é crucial para se alcançar a integralidade da assistência, em atendimento ao comando constitucional.

Os procedimentos de média e alta complexidade não são e não podem ser realizados pelo Ministério da Saúde/União, mas sim por meio dos gestores locais. Isso porque, neste bloco de financiamento, a União assume o papel de definir as políticas públicas e repassar regularmente os valores necessários aos Estados e Municípios.

Após repassar os recursos aos outros entes, a União se desembaraça da sua obrigação. Portanto, os erros relativos ao gerenciamento da rede de atenção devem ser imputados ao Estado ou ao Município faltante, já que o numerário foi transferido e cabia a esses entes gerenciá-lo. Ressalta-se que esse dever foi assumido espontaneamente pelo gestor local, no Pacto pela Saúde.

Andaria bem o Judiciário se impusesse a obrigação de realizar esses tipos de tratamentos médicos aos entes que realmente possuem capacidade de concretizá-los. A capacidade desses entes existe devido ao fato de possuírem a atribuição de gerenciar os hospitais locais, de acordo com as normas do SUS e em observância ao princípio da regionalização.

Quando o Poder Judiciário impõe a obrigação à União de proceder à internação de uma determinada pessoa em uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI), à realização de exames e/ou de cirurgias, bem como ao aumento da quantidade de leitos disponíveis em UTI em uma localidade, desorganiza o modo como é estruturado o Sistema Único de Saúde, causando prejuízos a toda população.

Por outro lado, quando os magistrados proferem decisões que respeitam a estrutura do Sistema, torna-se um aliado na organização do SUS, auxiliando, inclusive, no controle e no planejamento dos gastos públicos.

Referências bibliográficas

COLEÇÃO CONASS PROGESTORES – PARA ENTENDER A GESTÃO DO SUS Assistência de Média e Alta Complexidade no SUS. 1 ed. Brasília, v. 09, 2007.

BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial. Interesse Público, Belo Horizonte: Fórum, ano 9, n. 46, Nov/dez. 2007.

Parecer Técnico 241/2010 – Secretaria de Atenção à Saúde – Departamento de Atenção Especializada, Coordenação Geral de Atenção Hospitalar.

Parecer Técnico 443/2010 – Secretaria de Atenção à Saúde – Departamento de Atenção Especializada, Coordenação Geral de Atenção Hospitalar.

BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria GM/MS nº 204, de 29 de janeiro de 2007. Brasília: Ministério da Saúde, 2007.

BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria GM/MS nº 399, de 22 de fevereiro de 2006. Brasília: Ministério da Saúde, 2006.

Sítios Eletrônicos pesquisados:

Http://portal.saude.gov.br/portal/sas/mac/default.cfm. Acesso em 31/03/2011.

Http://dtr2004.saude.gov.br/susdeaz/ Acesso em 31/03/2011.

Http://portal.saude.gov.br/arquivos/pdf/SUS_3edicao_completo.pdf. Acesso em 25 de maio de 2010.


[1] A fim de facilitar a leitura, passar-se-á, a partir desse ponto, a se referir a esse bloco de financiamento como “AMACAH”, significando “Atenção de Média e Alta Complexidade Ambulatorial e Hospitalar”

 

 

[2] Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

[5] Compõe a CIT representantes dos três entes federados, União, Estados e Municípios. A CIB, por sua vez, é composta por representantes dos Municípios e dos Estados.

 

[6] Manual SUS de A a Z. Extraído do site HTTP:portal.saude.gov.br/arquivos/pdf/SUS_3edicao_completo.pdf. Acesso em 25 de maio de 2010.

[7] Nota Técnica 2180/2010, de 14 de dezembro de 2010 – Secretaria de Atenção à Saúde.

[8] BARROSO, Luís Roberto. DA FALTA DE EFETIVIDADE À JUDICIALIZAÇÃO EXCESSIVA – DIREITO À SAÚDE, FORNECIMENTO GRATUITO DE MEDICAMENTOS E PARÂMETROS PARA A ATUAÇÃO JUDICIAL. (p. 25).