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O Advogado da União, Demerval Rocha da Silva Filho publicou artigo na revista jurídica Consulex. Confira abaixo:

MEDIDA PROVISÓRIA NÃO CONVERTIDA EM LEI PODE CONTINUAR PRODUZINDO EFEITOS?

Dermeval Rocha da Silva Filho

É sabido que as medidas provisórias têm força de lei e produzem efeitos desde a sua edição. Importa verificar, entretanto, se esses efeitos se irradiam no plano dos fatos mesmo depois de rejeitada a medida provisória pelo Congresso Nacional ou a partir do momento em que a norma perdeu sua eficácia por decurso de prazo. Nessa perspectiva, demonstrar-se-á que, dependendo da ação ou omissão do Poder Legislativo, é possível que a medida provisória não convertida em lei, ainda que absurda sob todos os aspectos, não perca a sua eficácia em relação aos fatos havidos à época em que esteve em vigor.

Tomemos como exemplo uma medida provisória editada para majoração de contribuição à seguridade social. Essa medida provisória entra em vigor1, é prorrogada, mas tempos depois é rejeitada expressamente pelo Congresso Nacional. Nesse contexto, impõe-se questionar se a parte majorada pelo regramento rejeitado pode ser objeto de inscrição em dívida ativa em caso de não pagamento pelo contribuinte.

Entendemos que sim, desde que não editado decreto legislativo dispondo diferentemente no prazo de sessenta dias após a rejeição – tácita ou expressa – da medida provisória que majorou a contribuição. Tal resposta decorre da redação estampada nos §§ 3º e 11 do art. 62 da Constituição Federal.

A medida provisória é uma das normas previstas no processo legislativo brasileiro, legado do Direito italiano, instrumento preordenado a municiar o chefe do Poder Executivo ao pronto cumprimento de seu papel constitucional, quando premido por situações excepcionais de periculum in mora e relevância. Conforme dispõe a Emenda Constitucional nº 32/01, a medida provisória tem validade por sessenta dias, prorrogável por no máximo igual período.

O legislador previu que, na hipótese de sua rejeição tácita ou expressa, a medida provisória deixa de produzir efeitos para frente e para trás, o que significa dizer que perde sua eficácia desde a sua edição, irradiando os efeitos da rejeição com força ex tunc. É o que dispõe o § 3º do art. 62 da Carta Maior, com redação dada pela supracitada Emenda Constitucional, verbis:

Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional.

[…].

§ 3º As medidas provisórias, ressalvado o disposto nos §§ 11 e 12 perderão a eficácia, desde a edição, se não forem convertidas em lei no prazo de sessenta dias, prorrogável, nos termos do art. 7º, uma vez por igual período, devendo o Congresso Nacional disciplinar, por decreto legislativo, as relações jurídicas delas decorrentes.

Aqui se vê que a ideia inicial do Congresso Nacional, Poder legiferante por excelência, de estabelecer uma regra que se traduziria em limites ao Poder Executivo, não vem dando certo. E isto decorre do que estabelece o § 11 do mesmo dispositivo, segundo o qual “não editado o decreto legislativo a que se refere o § 3º até sessenta dias após a rejeição ou perda de eficácia de medida provisória, as relações jurídicas constituídas e decorrentes de atos praticados durante sua vigência conservar-se-ão por elas regidas”.

Na leitura feita por Niebuhr, as relações jurídicas levadas a termo durante a vigência de medida provisória persistiriam reguladas por suas normas pelo prazo de sessenta dias a contar da data em que elas supostamente perderiam os efeitos. Se elaborado decreto legislativo, tais relações jurídicas passariam a ser regidas por este. Se ele não fosse elaborado, tais relações jurídicas permaneceriam sob o pálio da medida provisória.2

Referido § 11, que veio para, em nome da segurança jurídica, ser exceção, tem se tornado regra, uma vez que, na prática, o Congresso Nacional, quando não converte em lei a medida provisória, deixa transcorrer in albis o prazo ali assinalado para disciplinar as relações havidas ao crivo da norma emanada do Presidente da República, omissão que, via de regra3, acaba por chancelar a validade dos referidos atos e relações antes praticados sob o pálio da medida às vezes até inconstitucional. É um problema a ser objeto de maior reflexão, não há dúvida.

Não foi por outra razão que Niebuhr se manifestou, no sentido de afirmar que, em relação ao § 11 do art. 62, se o Congresso Nacional não produzisse decreto legislativo em sessenta dias, a mais absurda medida provisória, eivada de vertical inconstitucionalidade, cujas normas corporificam a arbitrariedade do Presidente da República e o desprezo pela equidade, se manteria em vigor mesmo após pretensamente ter perdido os efeitos. Se milhares de cidadãos forem despojados de seus direitos por medida provisória e se o Congresso Nacional não se esforçasse para produzir decreto legislativo, tais direitos estariam comprometidos de uma vez por todas, em definitivo.4

O constitucionalista Alexandre de Moraes também assim averbou: A inércia do Congresso Nacional, no exercício de sua competência, acarretará a conversão dos tradicionais efeitos ex tunc (retroativos), decorrentes da rejeição de medida provisória, para efeitos ex nunc (não retroativos). Trata-se, pois, de envergonhado retorno aos efeitos não retroativos decorrentes da rejeição expressa do antigo decreto-lei. Ressalte-se, porém, que essa transformação de efeitos somente ocorrerá caso o Congresso Nacional não edite o necessário decreto legislativo no prazo constitucionalmente fixado.5

Assim, tal digressão já nos permite perceber o porquê da resposta à questão. Ora, não convertida em lei a medida provisória que majorou contribuição à seguridade social, e não havendo edição de competente decreto legislativo no prazo de sessenta dias dispondo diferentemente, não há dúvida de que a Fazenda Pública pode inscrever e cobrar o crédito gerado até a data da rejeição, fazendo-o com base na aludida medida provisória, a partir das relações já constituídas ao tempo em que vigente o diploma legal rejeitado.

DERMEVAL ROCHA DA SILVA FILHO é Especialista em Direito Constitucional. Advogado da União.

NOTAS

1 Segundo o STF, “o prazo nonagesimal (art. 195, § 6º, CF) é contado a partir da publicação da Medida Provisória que houver instituído ou modificado a contribuição” (RE AgR nº 453.490-SP, Primeira Turma, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJ 10.11.06).

2 NIEBUHR, Joel Menezes. O novo regime constitucional da medida provisória. São Paulo: Dialética, 2001, p. 160.

3 “Se o que se preservam são as relações jurídicas durante o período de vigência da medida provisória, o dispositivo constitucional deve ser entendido como a alcançar situações de inter-relacionamento entre sujeitos de direito, e não normas institutivas de órgãos e pessoas jurídicas. A rejeição de medida provisória que cria um órgão seria inócua […] se se entendesse que a própria criação do órgão é ato que se aproveita da ultra-atividade da medida provisória de que trata o § 11 do art. 62 da CF.” (MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2008.)

4 Op. cit., p. 160.

5 MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 1.149.

“Não convertida em lei a medida provisória que majorou contribuição à seguridade social, e não havendo edição de competente decreto legislativo no prazo de 60 dias dispondo diferentemente, não há dúvida de que a Fazenda Pública pode inscrever e cobrar o crédito gerado até a data da rejeição, fazendo-o com base na aludida medida provisória, a partir das relações já constituídas ao tempo em que vigente o diploma legal rejeitado.”

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